29 de dezembro de 2010

as flores que deixei de rastro pelo caminho

Que comece agora.
E que seja permanente essa vontade de ir além daquilo que me espera.
E que eu espero também.
Uma vontade de ser.
Àquela, que nasceu comigo e que me arrasta até a borda pra ver
as flores que deixei de rastro pelo caminho.
Que me dê cadência das atitudes na hora de agir.
Que eu saiba puxar lá do fundo do baú, o jeito de sorrir pros nãos da vida.
Que as perdas sejam medidas em milímetros e que todo ganho
não possa ser medido por fita métrica nem contado em reais.
Que minha bolsa esteja cheia de papéis coloridos
e desenhados à giz de cera pelo anjo que mora comigo.
Que as relações criadas sejam
honestamente mantidas e seladas com abraços longos.
Que eu possa também abrir espaço pra cultivar a todo instante
as sementes do bem e da felicidade
de quem não importa quem seja ou do mal que tenha feito para mim.
Que a vida me ensine a amar cada vez mais, de um jeito mais leve...
Que o respeito comigo mesma seja sempre obedecido
com a paz de quem está se encontrando e se conhecendo com um coração maior.
Um encontro com a vontade de paz e o desejo de viver...

Caio Fernando Abreu

27 de dezembro de 2010

essa lembrança que nos vem

Essa lembrança que nos vem às vezes ...
folha súbita
que tomba
abrindo na memória a flor silenciosa
de mil e uma pétalas concêntricas...
Essa lembrança ... mas de onde ? de quem ?
Essa lembrança talvez nem seja nossa,
mas de alguém que, pensando em nós, só possa
mandar um eco do seu pensamento
nessa mensagem pelos céus perdida ...
Ai! Tão perdida
que nem se possa saber mais de quem !!

Mario Quintana

21 de dezembro de 2010

sem limites para os esplendores do destino

“ Com efeito, se fosse possível aos nossos olhos de carne contemplar a consciência alheia, julgaríamos com mais segurança a personalidade de um homem mais pelo que sonha fazer do que pelo que realmente faz. O pensamento supõe vontade; o sonho não. O sonho, que é completamente espontâneo, conserva, mesmo quando irrealizável, o perfil de nossa espiritualidade; nada sai mas diretamente e mais sinceramente do fundo de nossa alma que as nossas aspirações irrefletidas e sem limites para os esplendores do destino. Nessas aspirações, muito mais que nas idéias coordenadas, refletidas, sensatas, pode encontrar-se o caráter de cada homem. Nossas quimeras são as que mais se assemelham a nós. Cada um sonha com o desconhecido e o impossível segundo a própria natureza. “
Cada um sonha com o desconhecido e o impossível segundo a própria natureza ...

Victor Hugo, Os Miseráveis

15 de dezembro de 2010

queremos querer

"O que se quer"
Querer alguém, ou alguma coisa, é muito fácil. Mesmo assim, olhar e sentirmo-nos querer, sem pensar no que estamos a fazer, é uma coisa mais bonita do que se diz. Antes de vermos a pessoa, ou a coisa, não sabíamos que estávamos tão insatisfeitos. Porque não estávamos. Mas, de repente, vemo-la e assalta-nos a falta enorme que ela nos faz. Para não falar naquela que nos fez e para sempre há-de fazer. Como foi possível viver sem ela? Foi uma obscenidade. Querer é descobrir faltas secretas, ou inventá-las na magia do momento. Não há surpresa maior.
O que é bonito no querer é sentirmo-nos subitamente incompletos sem a coisa que queremos. Quanto mais bela ela nos parece, mais feios nos sentimos. Parte da força da nossa vontade vem da força com que se sente que ela nunca poderia querer-nos como nós a queremos. Querer é sempre a humilhação sublime de quem quer. Por que razão não nos sentimos inteiros quando queremos? É porque a outra pessoa, sem querer, levou a parte melhor que havia em nós, aquela que nos faz mais falta. É a parte de nós que olha por nós e nos reconcilia connosco. Quanto mais queremos outra pessoa, menos nos queremos a nós…
Querer é mais forte que desejar, pelo menos na nossa língua. Querer é querer ter, é ter de ter. Querer tem mesmo de ser. Na frase felicíssima que os Portugueses usam, “o que tem de ser tem muita força”. Desejar tem menos. É condicional. Quem deseja, desejaria. Quem deseja, gostaria. Seria bom poder ter o que se deseja, mas o que se deseja não dá vontade de reter, se calhar porque são muitas as coisas que se desejam e não se pode ter todas ao mesmo tempo.
Querer é querer ter e guardar, é uma vontade de propriedade; enquanto desejar é querer conhecer e gozar, é uma vontade de posse. O querer diminui-nos, mas o desejar não. Sabemos que somos completos quando desejamos – desejamos alguém de igual para igual. Quando queremos é diferente – queremos alguém com a inferioridade de quem se sente incapacitado diante de quem parece omnipotente. O desejo é democrático, mas o querer é fascista.
O que desejamos, dava-nos jeito; o que queremos fez-nos mesmo falta. Mas tanto desejar como querer são muito fáceis. Ter, isto é, conseguir mesmo o que se quer é mais difícil. E reter o que se tem, guardando-o e continuando a querê-lo, tanto como se quis antes de se ter, é quase impossível. Há qualquer coisa que se passa entre o momento em que se quer e o momento em que se tem. O que é?
“Cada pessoa, – dizia Oscar Wilde, – acaba por matar a coisa que ama”...
Mata-a, se calhar, quando sente que a tem completamente. (…)
A verdade, triste, é que uma pessoa completa, a quem não falta nada, não é capaz de querer outra pessoa como deve ser. No momento em que se sente que tem o que quer, foi-lhe devolvida a parte que lhe fazia falta e passou a ter tudo em casa outra vez. Fica peneirenta, sente-se gente outra vez. É feliz, está satisfeita e deixou de ser inferior à sua maior necessidade. O ter destrói aquilo que o querer tinha de bonito. Uma necessidade ocupa mais o coração, durante mais tempo, que uma satisfação. Querer concentra a alma no que se quer, mas ter distrai-a. Nomeadamente, para outras coisas e outras pessoas que não se têm. (…)
É bom que se continue a julgar que aquilo de que se precisa é exterior a nós. Só quem está voltado sobre si, piscando o olho ao umbigo, pode achar que tem tudo o que precisa. (…)
Quando se quer realmente, dar-se-ia tudo por ter. A coisa ou a pessoa que se quer têm o valor imediato igual a todas as coisas e pessoas que já se têm. Trocavam-se todas as namoradas, ou todos os namorados, que já se namoraram, pelo namoro de uma única pessoa que se quer namorar. É esta a violência. É esta a injustiça. Mas é esta também a beleza. Quem aceitaria que um novo amor significasse apenas parte de uma vida? Não sendo a vida inteira, não sendo tudo o que importa, numa dada altura, num dado estado do coração, porque nos havíamos de ralar? (…)
O querer é bonito porque, concentrando-se na coisa ou na pessoa que se quer, elimina o resto do mundo. O resto do mundo é uma entidade muito grande que tem graça e tem valor eliminar. Querer um homem em vez de todos os outros homens, uma mulher em vez de todas as outras mulheres é fazer a escolha mais impossível e bela. Acho que se pode ter tudo o que se quer de muitas pessoas ao mesmo tempo, mas que não se pode querer senão uma pessoa. Ter todas as pessoas não chega para nos satisfazer, mas basta querer só uma, e não a ter, para nos insatisfazer. É por isso que se tem de dar valor à vontade. Poder-se-á querer ter alguém, sem querer também ser querido por essa pessoa? Eu não sei.
Como raramente temos o que queremos ter ou queremos bem ao que temos, é boa ideia dar uma ideia da atitude que se pretende. Em primeiro lugar, convém mentalizarmo-nos que querer é desejável só por si, pelo que querer significa. Quem tem tudo e não quer nada é como quem é amado por todos sem ser capaz de amar ninguém. Dizer e sentir “eu quero” é reconhecer, da maneira mais forte que pode haver, a existência de outra pessoa e de nós. Eu quero, logo existes. Eu quero-te, logo existo.
Em segundo lugar, ter também não é tão bom como se diz. Ter alguém ocupa um espaço vital que às vezes é mais bonito deixar vazio. (…)
Ter o que se quis não é tão bom como se diz, nem querer o que não se tem é assim tão mau. O segredo deve estar em conseguir continuar a querer, não deixando de ter. Ou, por outras palavras, o melhor é continuar a ser querido sem por isso deixar de ser tido. O que é que todos nós queremos, no fundo dos fundos? Queremos querer. Queremos ter. Queremos ser queridos. Queremos ser tidos. É o que nos vale: afinal queremos exactamente o que os outros querem. O problema é esse.

Miguel Esteves Cardoso

9 de dezembro de 2010

saudade

"Também temos saudade do que não existiu. E dói bastante."

(Carlos Drummond de Andrade)

6 de dezembro de 2010

o mistério com que embrulha todas as coisas ...


"Em todas as idas e vindas, obscuramente eu sempre sabia:
embora tudo mude, nada muda por que tudo permance aqui dentro,
e fala comigo, e me segura no colo quando eu mesma não consigo sustentar...
E depois me solta de novo, para que eu volte a andar pelos meus próprios pés.
A "vida" é mãe nem sempre carinhosa, mas tem uma vara de condão especial:
o mistério com que embrulha todas as coisas, e algumas deixa invisíveis..."
(Lya Luft)

5 de dezembro de 2010

o.lhar

essa sou eu...eu mesma !

Eu sou o que penso, sou o que sou e o que quero ser.
Sou família, sou filha, sou irmã e namorada.
Eu sou o tudo. Eu sou o nada.
Sou a sorte do que tenho e do que possuo. O azar do que a vida não me trouxe e eu desejei.
Sou um verme que um dia quis ser astro e tão depressa se tornou estrela.
Sou mais uma pecadora, com tamanha fé.
Sou um mundo de maldades e um paraíso de boas acções. Sou um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas.
Sou o meu reflexo num canto de paisagem, ou numa miragem, onde tu não podes ver.
Sou a alegria de quem me ama, a tristeza de quem me odeia e a ocupação de quem me inveja.
Sou uma folha em branco, ou um caderno completo.
Sou os livros que li e os textos que já te escrevi.
Sou os momentos que passei e os que ainda quero passar, eu sou os brinquedos com que brinquei, e os amigos que conquistei. As fábulas em que acreditei e os jogos que inventei.
Sou o amor que dei, o que dou e o que continuarei a dar. Sou os amores que tive, as viagens que fiz e as que quero fazer.
Sou todos os desportos que pratiquei, e aquele em que sempre continuarei por ser mais que lazer, é prazer. Sou a minha disciplina preferida, a minha comida predilecta, sou o cheiro que me seduz, a cor que me apaixona, a bebida que me refresca.
Essa sou eu...eu mesma, será que vais entender?
Sou o ódio resguardado, sou os sonhos realizados, os objectivos alcançados.
Eu sou o meu interior, mas também o meu exterior.
Sou um conjunto de factores que tu não podes entender.
Sou a saudade, os abraços que já dei, eu sou o passado, mas também o presente e o futuro.
Eu sou os meus actos.
Sou o perfeito, mas também sou o imperfeito.
Sou o contraste e a contradição.
Sou a complexidade do mundo.
Sou o que ninguém vê ...

Paula Fernandes e Sousa