18 de janeiro de 2011

O tempo e a Paciência

Se alguém me perguntar o que é o tempo, declaro logo a minha ignorância: não sei.
Agora mesmo ouço o bater do relógio de pêndulo, e a resposta parece estar ali. Mas não é verdade. Quando a corda se lhe acabar, o maquinismo fica no tempo e não o mede: sofre-o. E se o espelho me mostra que não sou já quem era há um ano, nem isso me dirá o que o tempo é. Só o que o tempo faz.
Que me sejam perdoadas estas falsas profundezas. Nada em mim se dispunha a coxear atrás do Einstein se não fosse aquela notícia de França: no rio Saône toda a fauna se extinguiu por acção de produtos tóxicos acidentalmente derramados nele, e cinco anos serão necessários para que essa fauna se reconstitua. O mesmo tempo que envelhece, gasta, destrói e mata (boas noites, espelho), vai purificar as águas, povoá-las pouco a pouco de criaturas, até que cinco anos passados o rio ressuscite da fossa comum dos rios mortos, para glória e triunfo da vida. (E depois casaram, e tiveram muitos afluentes.)
Não iria longe esta crónica se não fosse a providência dos cronistas, a qual é (aqui o confesso) a associação de ideias. Vai levando o rio Saône a sua corrente envenenada, e é neste momento que uma gota de água se me desenha na memória, como uma enorme pérola suspensa, que devagar vai engrossando e tarda tanto a cair, e não cai enquanto a olho fascinado. Rodeia-me um fantástico amontoado de rochas. Estou no interior do mundo, cercado de estalactites, de brancas toalhas de pedra, de formações calcárias que têm a aparência de animais, de cabeças humanas, de secretos órgãos do corpo - mergulhado numa luz que do verde ao amarelo se degrada infinitamente.
A gota de água recebe a luz de um foco lateral e é transparente como o ar, ali suspensa sobre uma forma redonda que lembra um bolbo vegetal. Cairá não sei quando, da altura de seis centímetros, e vai escorregar na superfície lisa, deixando uma infinitesimal película calcária que tornará mais breve a próxima queda. E porque nós parámos a olhar a gota de água, o guarda de Aracena disse: "Daqui a duzentos anos as duas pedras estarão juntas."
É esta a paciência do tempo. Na gruta imensa, o tempo está aproximando duas pedras insignificantes e promete a silenciosa união para daqui a duzentos anos. À hora a que escrevo, pela noite adentro, a caverna está decerto em escuridão profunda. Ouve-se o pingar das águas soltas sobre os lagos sem peixes - enquanto em silêncio a montanha verte a gota vagarosa da promessa.
A paciência do tempo. Duzentos anos a fabricar pedra, a construir uma pequena coluna, um mísero toco em que ninguém reparará depois. Duzentos anos de trabalho monótono e aplicado, indiferente às maravilhas que cobrem as paredes altíssimas da gruta e fazem rebentar flores de pedra do chão. Duzentos anos assim, só porque assim tem de ser.
Falo do tempo e de pedras e, contudo, é em homens que penso. Porque são eles a verdadeira matéria do tempo, a pedra de cima e a pedra de baixo, a gota de água que é sangue e é também suor. Porque são eles a paciente coragem, e a longa espera, e o esforço sem limites, a dor aceita e recusada - duzentos anos, se assim tiver de ser.

José Saramago

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